É consciência negra ou consciência humana?

Trocas de palavras apontam para discursos e ideologias

Hélio Oliveira · é mestre e doutor em Linguística pela Unicamp, pesquisador associado ao grupo Fórmulas e Estereótipos: Teoria e Análise, sediado no Instituto de Estudos da Linguagem, na Unicamp, interessa-se pelo estudo dos discursos de ódio e intolerantes, do discurso negacionista e de estratégias de popularização científica, além de ser um terrabolista apaixonado por literatura brasileira e pelos filmes do Almodóvar.

Você talvez já tenha ouvido essa pergunta no título, meio parecida com a simpática polêmica “É biscoito ou bolacha?”, sempre que chega o dia 20 de novembro, data em que celebramos o Dia da Consciência Negra no Brasil.

A analogia entre as duas perguntas, entretanto, não se sustenta. O fato de você falar “biscoito” ou “bolacha” não interfere no prazer de saborear esses petiscos e pouco ou nada muda no mundo – nos processos de produção, distribuição e comercialização desse alimento. Por outro lado, negar que se diga “consciência negra” e, por consequência, negar a existência de um dia dedicado à consciência negra têm graves consequências, pois a absoluta maioria de quem rejeita a celebração do dia 20 de novembro, rejeita também as pautas que acompanham o movimento negro.[1] Isso acontece porque não se trata de uma questão de gosto pessoal ou de uma marca linguística regional (como o caso biscoito/bolacha), mas de um conflito entre discursos: o Dia da Consciência Negra surge como símbolo (e síntese) do discurso antirracista no Brasil e o discurso que se opõe a esse dia, à sua denominação e às suas pautas não pode ser outro senão o discurso racista.

Até aqui, tudo bem, essas observações fazem sentido, mas falar em “consciência humana” não é racismo, né? – você pode se perguntar – Afinal, não parece ofensivo ou racista qualificar a consciência como “humana”.

Já que estamos falando de discursos, para responder a essa questão de forma objetiva e cientificamente embasada (ou seja, sem nos basear nas nossas opiniões pessoais), podemos buscar apoio na análise do discurso, campo da linguística que estuda palavras, frases e textos na medida em que eles correspondem a um discurso específico, por sua vez determinado pela história e pela ideologia.

Comecemos esclarecendo os conceitos de “discurso” e de “ideologia”, que são intimamente ligados. Conforme explicam Possenti e Piovezani (dois professores pesquisadores dessa área de estudos) uma das principais teses da análise do discurso (AD) é que um discurso é a materialização de uma ideologia. Isso significa que “discurso”, para a AD, não se refere apenas a uma frase ou a um texto, tal como os lemos ou ouvimos, mas a algo que existe antes das palavras, algo que determina inclusive a escolha das palavras que serão escritas ou ditas e que abrange, também, a ideologia, aqui entendida (simplificadamente) como um sistema de crenças ou um modo específico de ver o mundo.

Além disso, esse processo discursivo acontece em um contexto histórico específico: chamar a consciência de “negra” no Brasil é aceitável, mas usar a palavra correspondente em inglês (negro ou a variante nigger) nos EUA seria extremamente ofensivo. Mais um exemplo: celebrar a “consciência negra” no Brasil de 2024 é algo popular, majoritariamente positivo e desejável, mas a mera existência de tal expressão seria totalmente impensável durante o regime escravagista brasileiro, há 130 anos. 

Esses apontamentos nos levam a outra tese da AD: o sentido não está nas palavras (ou seja, não se limita ao que consta nos dicionários), mas depende do contexto sócio-histórico-ideológico em que a palavra é empregada.

Entendemos, assim, que o sentido (e a importância e as implicações) de “consciência negra” não se produz num espaço em branco, como se fosse um vácuo histórico, mas acontece ligado e motivado por uma história real, concreta, que é a história dos povos negros no Brasil e que, vale lembrar, é uma história de sofrimento, silenciamento e desqualificação.

Sofrimento e silenciamento porque, mesmo após a suposta “abolição” da escravatura, eles foram impedidos de circular na sociedade da época à procura de comida e/ou trabalho, pois isso seria crime de vadiagem; a prática de capoeira (luta praticada apenas por negros, na época) foi considerada crime; não podiam falar suas línguas maternas e até hoje suas religiões são perseguidas e difamadas. Por sua vez, a desqualificação aconteceu (e ainda acontece) por meio de discursos que os colocavam em um lugar de inferioridade: a pele negra era considerada “feia”, o cabelo negro era considerado “ruim”, o caráter dos negros era considerado indigno de confiança, como se fossem “naturalmente” violentos e irracionais. Até hoje ainda circulam estereótipos que ligam os negros a lugares de servidão, pobreza e falta de beleza. A esse respeito, lembremo-nos do triste episódio recente em que uma advogada branca duvidou da formação de uma médica negra, alegando que a médica “tinha cara de empregada doméstica” – como a advogada não conhecia a médica, nunca tinha falado ou se consultado com ela, baseou sua avaliação meramente na cor da pele da profissional em medicina.

Voltando à pergunta no título, percebemos que, na verdade, o problema parece ser a palavra “negra”, pois em “consciência humana” ela é o único termo que muda, não é mesmo? Dito isso, deveríamos nos perguntar, também: Por que esse termo incomoda tanto algumas pessoas, a ponto de quererem mudar o nome de um feriado nacional? E quais seriam as implicações, então, de apagar a palavra “negra”?

Ora, como acabamos de ver, junto com as palavras, vem todo um contexto histórico e ideológico, que seria também apagado com o adjetivo “negra” – tanto a lembrança das injustiças sofridas no passado (necessária para embasar ações afirmativas no presente) quanto as conquistas já alcançadas, motivo legítimo de orgulho.

Não à toa, a data também é chamada de “dia do orgulho negro” e a seu propósito acontecem exposições de “arte negra” e desfiles de “beleza negra”. Mais do que apenas celebrar, o Dia da Consciência Negra pretende marcar a presença dos negros em setores da sociedade outrora reservados apenas aos brancos.

Apagar essa palavra “negra” da expressão “consciência negra” seria o mesmo que apagar uma parte essencial da história que construiu as bases de nosso país e, ainda hoje, determina uma parte imensa de nossa identidade, em praticamente todos os aspectos, como música, arte, religião, culinária e a nossa língua, tal como a falamos hoje em dia.

Pode chegar o tempo em que haverá reais condições de igualdade, de justiça e de acesso a todos os bens públicos para todos os tipos de pessoa e, então, não seja mais necessário um dia específico para lembrar-nos da desigualdade ainda vigente. Até lá, todavia, é imprescindível dar voz e espaço para aqueles que por tanto tempo foram explorados, aviltados e silenciados, respeitando a data e o nome escolhido por eles. Viva o Dia da Consciência Negra!

PARA SABER MAIS:

OLIVEIRA, Hélio. Somos racistas? A dissimulação discursiva do racismo no Brasil. São Carlos: Edufscar, 2024.

POSSENTI, Sírio; PIOVEZANI, Carlos. Linguística do discurso. In: OTHERO, G. A.; FLORES, V. N. A linguística hoje: múltiplos domínios. São Paulo: Contexto, 2023.


[1] Para citar apenas um exemplo, uma das principais bandeiras do MBL (Movimento Brasil Livre) é extinguir o Dia da Consciência Negra e as políticas públicas de cotas para negros em concursos e vestibulares, como ficou claro nas campanhas eleitorais de vários de seus membros.