Com que roupa eu vou? O que tem a ver língua com roupa, ora bolas!?
Interagir através da linguagem é um exercício de negociação e adaptação.
Na escola, no trabalho ou em outros contextos, utilizamos a Língua Portuguesa, seja para escrever, seja para falar, considerando termos um código linguístico único. Mas será mesmo? Será que temos uma forma única de nos expressar? Eis a nossa questão intrigante. Pensemos assim:
Da mesma forma, na escrita ou na oralidade, precisamos fazer escolhas. Isso é o que chamamos de adequação da língua ao propósito comunicativo, à audiência (quem vai ler/ouvir) e ao contexto em que os textos serão recebidos. Às vezes, isso pode ser difícil, especialmente quando os textos necessitam de palavras que não fazem parte do nosso vocabulário.
Para alguns, a dificuldade talvez seja não saber qual a “roupa adequada” à ocasião; para outros, pode ser o fato de não terem tanta variedade à sua disposição em seu “guarda-roupa”. Enfim, essa possibilidade de escolha depende muito do acesso que tivemos (ou não), ao longo de toda nossa vida, seja escolar ou fora da escola, aos diversos gêneros textuais que circulam na sociedade, sejam eles orais ou escritos.
Antes de continuar, o que significa mesmo gênero textual?
Imaginemos uma situação de sala de aula em que o/a professor(a), durante uma aula de língua portuguesa, chega em sala e mostra aos alunos um exemplar de uma receita de bolo e pede que a leiam. Em seguida, pergunta se receita de bolo é um texto, o que eles, certamente, confirmam. Mas o que há nesse texto que permite aos alunos defini-lo como uma receita? Posso dizer que é o padrão comumente utilizado para se escrever esse gênero, como um título seguido dos ingredientes e do modo de preparo (ou de fazer). Logo, é um texto de instruções, uma fórmula para preparar alguma coisa.
Dei esse exemplo para contextualizar a noção que aprendi sobre gênero textual (ou do discurso), dada pelo filósofo e teórico literário russo Mikhail Bakhtin (1895-1975). No livro “Os gêneros do discurso”, o autor afirma que os gêneros “refletem as condições específicas e as finalidades” de cada um dos campos da atividade humana ligados ao uso da língua. Em outras palavras, ao lermos uma receita de bolo, como no exemplo dado acima, observamos uma certa regularidade na forma como esse texto é estruturado, que assim como outras receitas, partilham de padrões reconhecíveis pelos usuários da língua.
E o que essa história de gênero textual tem a ver com a adequação da língua? Tem tudo a ver, pois, além da estrutura, certos gêneros são produzidos em variedades mais monitoradas da língua. Dessa forma, em uma carta de reclamação, por exemplo, destinada a uma autoridade, não é apropriado usar a palavra “querido(a)”, gírias como “tipo assim”, as famosas abreviações “vc” e “pq”, ou finalizar se despedindo com um “tchau” ou “beijos”. De modo semelhante, um juiz, ao dirigir-se ao público em uma audiência, deve se pronunciar de maneira formal, a fim de manter a seriedade do rito jurídico. Enfim, não é adequado utilizar termos próprios da língua do dia a dia, que normalmente usamos com pessoas mais próximas, em textos e situações formais.
Honestamente, até uma professora de português como eu já teve dúvidas sobre quais palavras empregar nos textos mais monitorados: algumas vezes até usei expressões próprias da língua espontânea onde não elas cabiam (uma boa revisão pode resolver o caso!). Sobre essa tal língua espontânea, ela corresponde ao uso cotidiano e casual da língua, marcada por expressões coloquiais, gírias, abreviações e estruturas gramaticais mais simples; com frases mais curtas. Podemos encontrá-la nas nossas conversas com amigos, nas mensagens de texto que enviamos pelo celular, nos bate-papos das diversas redes sociais, nos blogs, nos e-mails pessoais etc.
Então, refletimos: Por que é importante o estudo da adequação da língua às diversas situações comunicativas?
A resposta é simples (ou pode não ser): é importante porque precisamos dominar a modalidade escrita da língua que falamos (e isso inclui identificar e diferenciar os gêneros que circulam na sociedade), sabendo empregá-la adequadamente em diversos contextos. Além disso, permite que expressemos nossas ideias de uma maneira mais clara, respeitando a situação e a finalidade de cada texto, sejam eles produzidos em sala de aula ou ligados às atividades de comunicação mediadas pela escrita ou pela fala em sociedade.
E ainda refletindo sobre a importância do estudo da adequação da língua, lembrei das contribuições da pesquisadora Stella Maris Bortoni-Ricardo, professora aposentada de Linguística da Universidade de Brasília (UnB). Ela aponta, em um livro publicado em 2005, que o ensino da Língua Portuguesa na escola deve ser influenciado, não pelos estilos coloquiais e espontâneos, mas pelos estilos que os alunos não dominam, ou seja, aqueles mais monitorados. Por isso é importante termos acesso a um ensino que reconheça a diversidade da nossa língua e que reflete a riqueza cultural desse imenso Brasil.
Todos nós, se não tivermos nenhum comprometimento cognitivo, já chegamos à escola falando o nosso português brasileiro, mas precisamos aprender a formalidade da escrita e da oralidade da língua e seus usos em diversos contextos comunicativos. E esse aprendizado vai além da mera aquisição de um código linguístico; é também uma questão social, pois a escola ainda é um meio de ascensão na sociedade tão desigual da qual fazemos parte, e o domínio da língua (e sua devida adequação) é uma poderosa ferramenta de promoção de mudanças e de acesso à cultura letrada.
Referências:
BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016.
BORTONI-RICARDO, S. M. Nós cheguemu na escola, e agora? : sociolinguística & educação. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.