“Potiguar não chia!” – Tem certeza?

Sobre a pronúncia potiguar e o imaginário linguístico.

Thayná Cristina Ananias · Thayná é mestranda em Estudos da Linguagem pela UFRN e entusiasta dos estudos sobre sons e suas realizações.

Se você é potiguar ou conhece alguém que é, certamente já ouviu essa frase por aí – possivelmente dita de forma orgulhosa: “Potiguar não chia!”. Muitos potiguares afirmam isso com orgulho sem a percepção de que também produzem sons “chiados”. Talvez ainda pelo fato de falantes de várias regiões do Nordeste sofrerem preconceito linguístico devido a aspectos de sua fala, muitos acreditam que, por outro lado, seu dialeto é motivo de orgulho e quem, da mesma região, produz de forma diferente está tentando imitar outros falantes de partes do Brasil que possuem mais prestígio social.

Mas afinal, o que estou chamando de “chiado”?  A produção chiada de ‘t’ e ‘d’ é a mais comum, produzida quando se falam palavras com esses sons seguidos de ‘i’, por exemplo, ‘txia’, ‘djigo’, ‘noitxi’. Além dessa produção para ‘t’ e ‘d’, há também o ‘s’ chiado ao fim da sílaba, majoritariamente percebido na fala de cariocas e recifenses, como em ‘fexta’ e ‘caxca’.

Algumas regiões do Nordeste são conhecidas por produzir ‘t’ e ‘d’ “duros” diante do som ‘i’, sem o tal “chiado” característico de muitas regiões do Brasil. Todavia, cabe aos pesquisadores da área da Fonética e da Fonologia desmistificar essa ideia um pouquinho. Nessa área, estudam-se os diferentes sons da fala e o que pode levar ou não a sua realização. Por exemplo, as produções ‘t’ e ‘d’ sem chiado são alveolares, isto é, produzidas com a elevação da língua até a parte atrás dos dentes, conhecida como alvéolos. Quando chiadas, são chamadas de palatais ou palatalizadas, pois, pelo fato da vogal ‘i’ ser realizada próxima ao palato, ela faz com que a língua, durante a produção de ‘t’ e ‘d’, se afaste dos alvéolos e vá em direção ao palato, provocando, então, o chiado. Dessa forma, há uma influência direta desse traço palatal da vogal sobre a consoante. Entende? E a motivação de caráter articulatório que acabei de mencionar, apesar de muito válida, consiste em uma entre várias explicações que resultam dos estudos em Fonética e Fonologia.

Já é de conhecimento geral que o Brasil é um país com diversos sotaques, o Nordeste não é diferente. Estudos como o de Pessoa (1986), Cunha e Silva (2019) e Cunha e Sales (2020) mostram que a produção palatalizada de ‘s’ em final de sílaba, que ocorre, sabidamente, no Rio de Janeiro e no Recife, também tem realização significativa em cidades do RN, como Natal e São José do Mipibu.

E o que isso quer dizer? Fale em voz alta o trava-línguas “Acabada a seresta, a senhora modesta bateu a testa na festa”.

Se você for potiguar, recifense ou carioca certamente conseguirá perceber a repetição de um certo “chiado”. Nesse caso, o som ‘s’ é alveolar, assim como ‘t’ e ‘d’ apresentados anteriormente, e passa a ser produzido como palatal devido à aproximação da língua, durante a produção, em direção ao palato duro. Entretanto, não há um ‘i’ próximo para influenciar essa produção, logo, pesquisadores como Cunha e Sales (2020) acreditam que o ‘s’ chiado acontece devido à necessidade de evitar a sequência de duas consoantes de mesmo ponto, como é o caso de ‘s’ e ‘t’ nos exemplos dados, já que ambas são alveolares. A partir dessa percepção, trabalhos surgiram procurando explicitar outros contextos em que o chiado pode ocorrer.

Em 2020, três regiões distintas do Rio Grande do Norte – Natal, João Câmara e Mossoró – foram investigadas com relação à ocorrência de ‘t’ e ‘d’ chiados diante de ditongo. E, de fato, percebeu-se uma frequência significativa de produções como “sítxiu” (‘sítio’), “pátxiu” (‘pátio’), “rádjiu” (‘rádio’) e “remédjiu” (‘remédio’). Ananias e Cunha (2022), por exemplo, identificam uma maior produção chiada na fala de pessoas mais jovens e mulheres mossoroenses.

Claro que no contexto mais disseminado, diante de ‘i’, como nas palavras ‘tia’, ‘dia’, ‘tipo’ e ‘diga’, as consoantes focalizadas tendem a ser produzidas ainda de forma dura/forte, mas nem essa produção é categórica nos lugares pesquisados.

Por isso, é importante reconhecer a manifestação dessas “novas” produções em um dialeto, até então, reconhecido pela sua dureza – uso de formas não palatalizadas de ‘t’ e ‘d’. É inevitável, então, perceber a mutabilidade da língua e, possivelmente, a expansão dos fenômenos fonéticos no nosso país. Sendo assim, devemos questionar: tem certeza que potiguar não chia?

REFERÊNCIAS

ANANIAS, Thayná Cristina. CUNHA, Carla Maria. A palatalização dos segmentos /t/ e /d/ adjacentes a ditongo em registros de fala mossoroense. Revista de Estudos da Linguagem, [S.l.], 2021. ISSN 2237-2083. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/relin/article/view/18040 Acesso em: 28 jan. 2022.

CUNHA, C. M.; SALES, G. Produção do /s/ pós-vocálico em São José do Mipibu-RN. Revista do GELNE, v. 22, n. 2, p. 78-92, 28 jan. 2022.

CUNHA, Carla Maria. SILVA, Priscila Sheila de Medeiros da. A palatalização do /s/ em coda em registro de fala natalense.In: HORA, Dermeval da [et al.] (Orgs.). Estudos linguísticos (teorias e aplicações): contribuições da Associação de Linguística e Filologia da América Latina – ALFAL. São Paulo: Terracota Editora, 2019. p. 45-62. Disponível em:<https://www.mundoalfal.org/es/content/libro-estudos-linguísticos-teorias-e aplicações-contribuições-da-alfal> Acesso em: 22 jan. 2022.