As palavras carregam histórias: o contato linguístico do português brasileiro
O contato linguística e a formação do léxico do português brasileiro.
Numa aula de português para estrangeiros, um aluno marroquino, falante de árabe, perguntou-me o porquê de o português conter várias palavras de origem árabe. Alunos de diversas nacionalidades compunham a sala de aula naquele dia, então foi um momento muito oportuno para explicar a história do vocabulário do português brasileiro. É difícil de imaginar que exista uma língua totalmente “pura” ou uma cultura que tenha começado do zero. Se existem 8 línguas derivadas do latim que são tão parecidas, mas, ao mesmo tempo, tão diferentes é porque, nos diferentes territórios de conquista, o latim entrou em contato com diversas línguas, diferentes entre si. Foi desse contato com a línguas celtas que surge o português/galego no noroeste da Península Ibérica.
O português brasileiro, em sua totalidade, é resultado de um longo processo histórico, refletindo a história do contato entre povos, culturas e línguas. A esse fenômeno social comum à história da humanidade dá-se o nome de contato linguístico.
Definir o que é contato entre línguas talvez não pareça ser uma tarefa tão simples dada a sua complexidade. Numa definição mais simples e genérica, é o uso de mais de uma língua num mesmo espaço ao mesmo tempo. Ainda assim, é preciso definir, antes da mais nada, as características do contexto social e linguístico que a situação de contato ocorre, tais como o grau, as comunidades em contato, as línguas que participam do contato etc. Assim, sendo mais específico, nosso foco será as situações de conquista e de colonização/escravizaçãoque circundam a história social-política-linguística da língua portuguesa. Além disso, os efeitos decorrentes do contato podem ser variados, como a manutenção de língua, a mudança de língua, a criação de novas línguas (as chamadas línguas crioulas), o bilinguismo, a aquisição de língua, o empréstimo linguístico etc. O que vai nos interessar aqui será as mudanças que operam no nível do léxico, isto é, das palavras, mais especificamente os empréstimos linguísticos, isto é, o povo que passa a falar a língua nova transfere aspectos linguísticos de sua língua nativa para a língua alvo, seja no nível fônico (os modos de pronunciar as palavras), no nível morfossintático (a gramática), léxico (palavras) etc.
Num tempo mais remoto… a conquista
Grande parte de nosso vocabulário deriva fundamentalmente do latim vulgar, que foi a variedade de latim falado pela população mais humildade da civilização romana, “latim do povo”, e que foi o ponto de partida da formação das línguas românicas (português, galego, espanhol, francês etc.).
Mas não é só de romanismo que é feito o português. No século II, as tropas romanas invadiram a Península Ibérica. A região já era habitada pelos povos iberos, celtas, celtiberos, gregos e fenícios, falantes de línguas bem diferentes um das outras. Sempre que um território era conquistado, à medida que o império se expandia, os romanos impunham o latim vulgar como a língua daqueles falantes, fazendo desaparecer, pouco a pouco, as línguas nativas. Como resultado, existem no nosso léxico vestígios de origem ibérica como: bizarro, lousa, cama, esquerdo, manto, barro, garra, sapo, sarna, bezerro, arroio, baía, páramo, nêspera (COUTINHO, 1976, P.189). Os vocábulos de origem celta foram os que mais penetraram no latim. Dos celtas, herdamos algumas palavras como: cavalo, camisa, cerveja, manteiga, vassalo, gato, saia, berço, bico, lança, cabana, caminho (HAUY, 1994, p.13). Há vestígios de influência céltica nos nomes de lugares também: Coimbra, Bragança, Évora, Lisboa. As palavras de procedência grega penetram no latim até mesmo em épocas mais remotas à invasão na Península, em solo itálico. Do grego, algumas palavras como chato, caixa, golfo, órfão, telefone, fonema, xenofobia, telepatia, sintaxe, etc. Por influência da igreja católica, com advento do cristianismo, muitas palavras se agregaram ao latim: anjo, bispo, bíblia, diabo, paróquia, mosteiro, etc. Na escola, aprendemos história, matemática, filosofia, gramática. Atualmente, no âmbito da política, fala-se muito em democracia, e da economia. Os gregos foram fundamentais na construção do mundo ocidental em que vivemos. Com a descentralização do poder político e, portanto, o seu enfraquecimento, as invasões foram inevitáveis. No século V, ocorre uma invasão maciça por parte dos povos germânicos na Península. Foi fator que possibilitou a penetração de novas palavras ao latim. O latim recebeu das línguas germânicas faladas por suevos e visigodos palavras que se referem basicamente ao campo da guerra, usos e costumes, objetos e utensílios como: agasalho, aspa, barão, roupa, saga, grupo, guia, estaca, brasa, dardo. Passaram para o latim alguns verbos e adjetivos também: branco, fresco, morno, rico, guardar, roubar, tirar, esgrimir. Parte-se da mesma origem os quatro pontos cardiais: norte, sul, leste, oeste (COUTINHO, 1976, p.191). Com a invasão dos árabes, no século VIII, a longa permanência dos mulçumanos na Península deixou uma forte herança cultural e essencialmente lexical, fazendo expandir saberes: açafrão, açougue, açude, alecrim, álcool alface, alfazema, algodão, algarismo, álgebra, alvará, arroba, armazém, arroz, azeitona, azulejo, enxaqueca, cenoura, chafariz, fulano, laranja, xarope, xaveco, xeque etc. (COUTINHO, 1976, p.193). A maioria das palavras árabes, existentes no português, contém o artigo definido al (o/a), muitas vezes com o l integrado (assimilado) à consoante inicial, o que vale dizer r, z, c e d: arroba (al-roba), arroz (al-ruz), azeite (al-zait), azeitona (al-zeitun), açougue (al-çauc) etc.
O Brasil… a colonização/escravização
Parece que os portugueses aprenderam com os romanos quando saíram com seus navios, comandado por Vasco da Gama, conquistando terras, escravizando e impondo aos povos a língua, religião. No início do século XVI, no Brasil-Colônia, período que perdurou por mais três séculos, ocorreu um dos acontecimentos mais tenebroso da história do Brasil que foi o período de colonização, resultando na escravização de aproximadamente quatro milhões de negros traficados de sua terra natal e o extermínio em massa dos povos indígenas. Ao longo de 500 anos de história, é um período complexo marcado por uma diversidade de línguas, a presença das línguas indígenas (desde antes mesmo da colonização), das línguas africanas e, depois, das línguas dos imigrantes europeus e asiáticos.
Os primeiros povos que, no início do século XVI, os portugueses entraram em contato foram com as tribos indígenas que ocupavam a costa do Brasil. Estima-se que eram faladas mais de mil línguas diferentes. Essas línguas eram aparentadas entre si. Devido a essa regularidade entre as línguas, tornou-se possível a criação de uma língua veicular, as chamadas línguas gerias. Essas línguas gerais eram línguas do grupo tupi para transmitir valores europeus, catequizar, e, talvez o mais importante, conhecer a terra desconhecida. Os europeus desconheciam a enorme diversidade da fauna e flora brasileira. Os índios é que foram apresentando a eles, dando nome as coisas. Por isso que as influencias foram em grande escala no nível das palavras. Localidades: Itaim, Ipanema, Pará, Tijuca, Aracaju. Flora/fauna: aipim, açaí, abacaxi, pitanga, pequi, caju, et; capivara, quati, tatu, jacaré, jaguar, tatu, jiboia, sabiá, urubu, etc. Nome de pessoas: Iraci “mãe do mel”; Iracema “fluxo de mel; Juçara; Moema ‘mentira” etc. (BOSSAGLIA, 2019, p.191). São nomes de origem tupi também personagens muito conhecidos do nosso folclore saci e caipora (TEYSSIER, 2014, p.109). Percebemos, por meio desse vocabulário típico brasileiro, a grandiosidade ecológica, geológica de nosso país que as línguas do grupo tupi nos alegaram.
Na história do português do Brasil, a contribuição das línguas africanas é fundamental. Entre os séculos XVI e XIX, o tráfico de escravos foi uma atividade econômica muito intensa entre os europeus (portugueses, franceses, espanhóis etc. No Brasil, não se sabe com exatidão o número de escravos transplantados. Cálculos mais recentes estima cerca de 4 milhões de escravos. As línguas dos negros-escravizados eram majoritariamente do grupo banto – sendo elas quicongo, umbundo e quimbundo – e do grupo kwa – sendo iorubá, ewe, fon e mahi.
As interferências africanas são sem dúvida responsáveis por diversas características do português brasileiro. É mais precisamente no nível das palavras que podemos encontrar as manifestações mais evidentes do contato entre o português e as línguas africanas.
O iorubá se instalou principalmente na Bahia, formando a base vocabular relativo a cerimônias do candomblé, umbanda, macumba, orixá ou na culinária vatapá, acarajé. Outras palavras compartilhadas por todos da sociedade brasileira e que transitam no âmbito da recreação: samba, capoeira, forró; de instrumentos musicais: berimbau, cuica, agogô; da culinária: mocotó, moqueca, mungunzá, canjica; das doenças: caxumba; da flora: dendê, jiló, maxixe; da fauna: camundongo, minhoca, marimbondo; da família: moleque, caçula, babá; dos insultos: sacana, lelé; da afetividade: xodó, dengo, cafuné; das vestes: sunga, tanga, canga. (CASTRO, 2011).
Vale ressaltar que as palavras incorporadas ao vocabulário do português não se esgotam aqui. Há, ainda, para levar em conta, as influências das palavras originárias de menor contato. As línguas dos imigrantes que passaram a ocupar o Brasil a partir do século XIX também fazem parte da história do nosso vocabulário.
Com essa resposta ao meu aluno marroquino, posso dizer que o empréstimo linguístico é um fenômeno social e linguístico (sociolinguístico) comum à história do português brasileiro, resultado do contato entre línguas. As línguas não são alheias aos seus falantes como se fossem entidades autônomas; pelo contrário, elas seguem o destino de seus falantes e estão, portanto, submetidas às dinâmicas sociais. As palavras atestadas no nosso léxico nos mostram muito bem. São grandes testemunhas. E não estamos falando apenas da troca de palavras entres falantes que usam línguas diferentes. Estamos falando das palavras de origem de diferentes línguas que constituem maneiras de enxergarmos o mundo, de mostrar e categorizar realidades, de apreciar novos sentidos e de entrar em contato com diferentes culturas.
Bibliografia
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