A análise do discurso e a Construção da figura feminina em Chico Buarque
As ferramentas da análise do discurso desvendando a ideologia presente em músicas.
Muito provavelmente, você já deve ter ouvido alguma música do álbum “Construção”, de Chico Buarque, de 1971. Esse álbum é tido como um dos maiores sucessos do artista e foi produzido durante a ditadura civil-militar no Brasil. Fazendo um paralelo com a época em que foi lançado e os pressupostos da Análise do Discurso (doravante, AD), é possível questionar se as mulheres construídas e representadas na obra do compositor são reproduções do discurso machista que circulava naquele momento.
Nosso objetivo neste texto é demonstrar como podem ser realizadas análises linguísticas, levando em conta a metodologia da AD. Além disso, desejamos discutir algumas questões de gênero nas músicas “Cotidiano”, “Acalanto” e “Olha, Maria”, de Chico Buarque. Neste último ponto, destacamos que abriremos mão da análise da melodia e do arranjo musical, e nos debruçaremos sobre os aspectos puramente linguísticos do texto, como o uso de diminutivos e imperativos, por exemplo.
Um dos elementos que são necessários à AD é o contexto sociopolítico. Na época em que foi lançado o disco Construção, a ditadura civil-militar brasileira atingiu seu auge de popularidade e tortura graças ao Ato Institucional nº 5, entendido como um aval para o acontecimento de prisões, desaparecimentos e assassinatos de qualquer pessoa que se opusesse aos ideais do sistema autoritário vigente. Em contrapartida, a ascensão da segunda onda feminista concomitante ao regime militar fez com que houvesse mais mulheres participando da política de resistência do país, considerando a repressão da liberdade de expressão, principalmente no meio artístico. A figura da mulher é, então, compreendida a partir desse embate de classes: de um lado os estereótipos se estabelecendo de maneira opressora por ideologias reguladoras do papel feminino e, de outro, as feministas sendo resistência, propondo mudanças naquilo que se imaginava ser o local adequado para uma mulher ocupar.
Para a AD, além do contexto sociopolítico, é importante compreender que um discurso é composto por uma ideologia, ou seja, um conjunto de ideias sobre algum assunto específico. Fernanda Mussalim, uma importante autora brasileira da área em questão, aponta que a Formação Discursiva (doravante, FD) consiste naquilo que pode e deve ser dito a partir de uma posição de classe, em determinado contexto político, articulando discursos e ideologias.
Nesse sentido, no Brasil dos anos 70, as ideologias que mais circulavam a partir das classes dominantes eram as de cunho religioso (no caso, a Igreja Católica) e social (a família) que, por meio de seus porta-vozes oficiais, como um padre católico e um pai de família, respectivamente, transmitiam pensamentos conservadores em detrimento de pensamentos progressistas, como as propostas feitas pelo feminismo.
Retomemos, agora, a representação da mulher na obra de Chico Buarque a partir da contextualização traçada até aqui. Na música “Cotidiano”, há elementos que permitem imaginar uma figura feminina hétero, branca e de classe social elevada dentro do contexto do regime militar no Brasil. Essa música, como o próprio nome já nos adianta, aborda o dia a dia do homem retratado nela, em que sua rotina é marcada pela presença de sua mulher, que aparenta ser muito dedicada aos afazeres domésticos e devota ao suposto marido.
Na música, podemos reconhecer algumas marcas ideológicas que reforçam a submissão da mulher. Nos versos, o pronome pessoal oblíquo da primeira pessoa do singular (“me”) sugere que a mulher desempenha um papel ativo nas ações relacionadas ao homem, pois é quem as inicia, como em “Me sacode às seis horas da manhã”, em que ela o desperta de seu estado de sonolência; ela sorri para ele, o beija e o espera para o jantar. Apesar desse cenário em que a mulher é demonstrada linguisticamente como aquela que desempenha um papel ativo, ainda é constantemente submetida a exercer seu papel social como passiva às ações do homem. Além disso, percebemos certa naturalização sobre o pensamento machista que se tinha sobre a mulher, como nos versos “E essas coisas que diz toda mulher/Diz que está me esperando pro jantar”. Assim, é possível entender que, na sociedade brasileira, era normal uma mulher se restringir às tarefas de casa e ser amorosa com o marido.
Como observado na canção anterior, a delimitação dos papéis do homem e da mulher é generalizada e reforçada em alguns versos da canção “Acalanto”. Neles, o masculino é colocado como superior, cuidador e, de certa maneira, possuidor da figura feminina; por exemplo, com a utilização do modo imperativo do verbo “dormir”, em que se sugere que a mulher descanse, pois não vale a pena despertar. Enquanto ela dorme, o homem declara “Eu vou sair por aí afora/Atrás da aurora mais serena”, reafirmando o posicionamento ideológico de que as tarefas desempenhadas pela mulher são aquelas restritas ao lar, enquanto as do homem são para fins de sustento e provisão. Ademais, observamos que “minha pequena”, a quem é dedicada a música, é introduzida por um pronome possessivo, o que poderia ser interpretado como uma colocação carinhosa, certo? Porém, ao relacionarmos a posse presente em “minha” e a posição da qual a figura masculina fala, esse carinho junto ao nome “pequena” ganha outra interpretação: ao fazer referência a um ser supostamente indefeso e menor, o sujeito da canção demonstra superioridade em relação a uma pessoa construída por ele como “inferior”.
Por fim, a música “Olha, Maria” nos permite refletir sobre a escolha do nome “Maria” para ser a protagonista dos acontecimentos da canção. Sabemos que esse nome próprio é muito popular no Brasil devido à tradição cristã no país. Isso remonta um cenário em que condiciona (e por que não dizer “prende”?) a mulher à castidade, pureza, devoção, fé e esperança, papéis desenvolvidos por Maria, mãe de Cristo, de acordo com o relato bíblico. É por conta dessa rememoração que podemos dizer que nos versos dessa canção há Memória Discursiva (MD), conceito definido como interdiscurso, pois é o lugar em que dois discursos (no caso, social, com a canção, e religioso, de tradição cristã-católica) estão em convergência. Além disso, a MD se estabelece por meio de falas consolidadas que atribuem para a preservação de certos conceitos que perduram por muitos anos, como a utilização do nome “Maria”.
Na música, a declaração de um amor possessivo masculino “Eu bem que te queria fazer uma presa da minha poesia”, condiciona a mulher a uma prisão passional, numa tentativa de torná-la sua musa inspiradora. Nos versos seguintes, alguns detalhes sobre a partida de Maria nos auxiliam na compreensão acerca de seu destino. Em “Maria fugindo contra a ventania” é possível inferir que se trata de uma mulher que vivia uma vida padrão, sujeita aos estereótipos daquela sociedade e, agora, deseja escapar dessa vida como “Maria maré”. Por fim, observando que, a partir do momento em que a figura masculina percebe que a mulher vai partir, todos os conceitos e as referências atrelados à MD bíblica começam a ganhar novas formas. Em “Que estás toda nua, que a lua te chama”, insinua-se que as características que antes eram próprias de Maria, agora dão lugar à nudez e aos elementos de uma vida noturna.
Como visto, a breve análise que fizemos aqui conta com elementos que estão para fora do texto, mas que são recuperados a partir dele, como o contexto político-social, além das ideologias religiosas e sociais que circulam nele, de maneira a constituí-lo, reforçá-lo ou combatê-lo. Apesar disso, percebemos que há certos pontos de resistência frente a esses pensamentos, uma vez que a mulher passa de Maria e foge dessa vida, deixando-se seduzir pela noite.
É possível dizer que esse resultado, ainda que pequeno, é responsabilidade do feminismo no Brasil, que ganhou força e visibilidade após o fim do regime militar. Desde lá, é possível acompanhar a mudança acerca da representação e construção da figura feminina, mesmo com uma sociedade ainda machista e conservadora: agora, essa mulher passa a se representar e a se construir, não mais precisando partir da visão definitória, controladora e opressora do masculino.
Referências consultadas
CHICO BUARQUE. Acalanto. Rio de Janeiro: PolyGram: 1971. (1min38s).
_________. Cotidiano. Rio de Janeiro: PolyGram: 1971. (2min49s)
_________. Olha Maria. Rio de Janeiro: PolyGram: 1971. (3min56s)
MUSSALIM, Fernanda. Análise do Discurso. In: MUSSALIM, Fernanda; BENTES, Anna Christina. Introdução à linguística: domínios e fronteiras.São Paulo: Editora Cortez, 2009. p. 102-143.