A retórica e a democracia
A fala em público é o resultado de uma série de métodos e práticas, cujos conhecimentos e treinamentos fazem com que mesmo os menos afeitos ao brilho oratório possam se tornar bons oradores.
Podemos dizer qualquer coisa na vida em sociedade? Podemos fazê-lo de qualquer modo? A ideia de que há igualdade de direitos numa democracia resiste à de que existiriam sujeitos mais eloquentes do que outros? Como podemos resolver o problema gerado pela diferença entre as capacidades de falar em público dos indivíduos, de modo que ela não seja um obstáculo à participação política num regime democrático? Para iluminar um pouco o debate sobre essas questões, façamos um breve passeio pela história do surgimento da retórica na Antiguidade e vejamos suas relações com o aparecimento da democracia na Grécia antiga.
O surgimento da retórica está relacionado ao regime de governo democrático. Até o século VII a.C., várias cidades gregas eram governadas por monarquias, nas quais as decisões políticas eram tomadas sem debates e sem consulta popular. Já a partir do século seguinte, muitas delas passariam a se organizar politicamente como democracias.
Esse regime compreendia algumas restrições, tal como a interdição de voz e voto aos escravos, às mulheres e aos estrangeiros. Mas, ele estabelecia um direito igualmente distribuído ao exercício da fala pública para todos os que eram considerados cidadãos. Havia naquele contexto assembleias populares em que aconteciam exposições de distintos pontos de vista sobre decisões a serem tomadas e sobre ações a serem empreendidas, com vistas ao julgamento do que seria mais útil à coletividade. Esse julgamento cabia, então, ao povo, que recusaria ou aceitaria as opiniões expostas naqueles debates. A situação era marcada, portanto, por uma igualdade formal de acesso e de direito à fala pública e ao voto a ser dado a certa proposta apresentada.
O surgimento da retórica está relacionado ao regime de governo democrático.
O problema que surgiu rapidamente foi o de que algumas falas eram mais atraentes e eficazes do que outras. Assim, a idealizada igualdade de fala tinha de enfrentar as reais diferenças e as efetivas desigualdades na capacidade de persuadir. Foi daí que derivaram as buscas por técnicas e meios para amenizar essas desigualdades.
Para chegar à proposta e ao ensino dessas técnicas e meios, aqueles que são considerados os primeiros autores da Retórica, Córax e Tísias, puderam observar o que se passava na virada do século VI para o século V a.C. na região da Sicília, mais particularmente nas cidades de Agrigento e Siracusa. Depois de terem sido governadas por tiranos, ao passar a regimes democráticos, essas cidades assistiram a muitos processos de contestação da propriedade de terras que se deram diante de juris populares. Córax e Tísias observaram naquelas repetidas situações o que mais convencia os juízes, tomaram notas do que se mostrava como mais persuasivo, aperfeiçoaram esse conteúdo e passaram a ensiná-lo aos que pretendiam melhorar seu desempenho oratório.
Assim, podemos ver que a democracia e a retórica são irmãs, porque a primeira é regida pelo princípio da isonomia, ao passo que a segunda se baseia na ideia de isêgoria. Nas duas palavras identificamos o radical grego ísos-, seja na sua forma idêntica em “isonomia” seja em sua forma modificada em “isêgoria”, cujo significado é “igual”. Há relativo consenso de que isonomia corresponde à igualdade de direitos políticos e civis.
No dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, esse termo aparece assim definido: “princípio geral do direito segundo o qual todos são iguais perante a lei, não devendo ser feita nenhuma distinção entre pessoas que se encontrem na mesma situação”. A essa definição ainda se acrescenta o seguinte comentário sobre a origem da palavra: “Etimologia grega: isonomía, as, repartição por igual; igualdade de direitos em um governo democrático”.
Já a noção de isêgoria estabelece igualdade de participação numa assembleia e igual distribuição do tempo de uso da palavra. A isêgoria é, pois, “o direito à fala equipolente para cada cidadão”. Esse direito de igualdade de fala se efetivava na parrêsia, ou seja, no efetivo exercício dessa liberdade para falar francamente. A preocupação com a igualdade nas falas pode ainda ser observada no uso da ampulheta que era feito para a mensuração e a igual divisão dos tempos dispendidos por cada orador, conforme sugere o sociólogo alemão Norbert Elias (1998).
É verdade que a igualdade de fala esbarrava também numa concepção naturalista da oratória que vigorava entre os antigos. Nela, era costume afirmar que a excelência nessa prática seria um dom natural, que poderia ser desenvolvido mediante procedimentos e exercícios especializados. Mas, a herança democrática das técnicas retóricas se baseia numa concepção oposta, que se impôs sobre a primeira e sobre sua ideia de que a eloquência seria um talento que cada um já traz ou não consigo desde seu nascimento. Essa concepção sustenta que a fala em público é, antes, o resultado de uma série de métodos e práticas, cujos conhecimentos e treinamentos fazem com que mesmo os menos afeitos ao brilho oratório possam se tornar bons oradores.
Podemos supor todo potencial igualitário e emancipador que há nessa ideia de que não nos limitamos ao que nos é inato e de que podemos nos tornar o que quisermos, desde que tenhamos a devida instrução e o necessário empenho.
[A] fala em público é, antes, o resultado de uma série de métodos e práticas, cujos conhecimentos e treinamentos fazem com que mesmo os menos afeitos ao brilho oratório possam se tornar bons oradores.
Dado esse seu potencial, a retórica foi atacada desde sua emergência. Esses ataques continuaram a ser feitos em tempos e lugares distintos e por razões diversas. Já entre os antigos inimigos da retórica, os mestres das técnicas de fala pública eram vistos como sofistas, ou seja, como quem, em troca de pagamento, ensina práticas sedutoras de linguagem, que tornam qualquer um capaz de falar sobre qualquer coisa e de enganar um auditório.
Assim, a acusação do mau hábito de alguns professores de retórica se estendia indistintamente a todo um grupo e servia de pretexto para condenar a igualdade de fala, conquistada a duras penas. Em nossos dias, conservadores e reacionários continuam a empregar estratégia análoga para tentar impedir conquistas e avanços democráticos e igualitários.
Referências e livros sobre retórica e fala pública
Courtine, Jean-Jacques; Piovezani, Carlos. História da fala pública. Petrópolis, Vozes, 2015.
Elias, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
Houaiss – dicionário de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2001.
Piovezani, Carlos. A voz do povo: uma longa história de discriminações. Petrópolis, Vozes, 2020.
Plebe, Armando. Breve história da retórica antiga. São Paulo, EPU, 1978.