Nem sempre as pessoas falam aquilo que dizem que falam
O comportamento linguístico é modelado pelas crenças e atitudes em relação à língua, que afetam o processo de constituição da identidade pela língua e pelo discurso, fazendo com que fenômenos variáveis não sejam igualmente percebidos por todas as pessoas.
Toda vez que visito meu pai, é a mesma coisa: fico no meio da revolta dele contra o uso de “a gente”. Ele fica indignado porque os jornalistas da Globonews usam “a gente”, “a gente”, “a gente”. Ele diz que “é um desserviço à educação”, é um “empobrecimento da língua”, e fica preocupado com o futuro e o que vai ser do mundo, só por causa desse “a gente”. Aí, depois de todo o textão, de repente ele solta “A gente precisa pensar no almoço”…
É curioso: o mesmo fato do rearranjo do sistema pronominal do português que meu pai usa para desqualificar o uso de “a gente” está presente na trajetória de “você”, uma forma educada, segundo ele, pois paulistas só usam “você”. Nunca o ouvi dizer que usar “você” é coisa de quem não sabe conjugar verbos, como ele faz com quem diz “a gente”.
Para estudar mudança linguística, não basta saber quanto e quando cada pessoa usa uma forma variante, mas saber também como as pessoas julgam, consciente e inconsciente, essa forma.
Meu pai não é exceção: em um estudo, universitários, que durante 1h de entrevista praticamente só usaram a forma “a gente”, quando questionados sobre qual a forma que usam mais no cotidiano, quase que unanimemente responderam que usavam “nós”, a forma “mais correta”. Ou seja, para estudar mudança linguística, não basta saber quanto e quando cada pessoa usa uma forma variante, mas saber também como as pessoas julgam, consciente e inconsciente, essa forma. Assim, teremos uma ideia da força social de uma mudança linguística, e esse é um campo que tem sido ainda muito pouco explorado nos estudos sociolinguísticos brasileiros. O empreendimento sociolinguístico no Brasil tem contribuído para caracterizar as diferentes variedades de Português Brasileiro, com estudos de produção sociolinguística, que produzem descrições sobre o comportamento linguístico de certos grupos de pessoas.
Mas não podemos esquecer que o comportamento linguístico é modelado pelas crenças e atitudes em relação à língua, que afetam o processo de constituição da identidade pela língua e pelo discurso, fazendo com que fenômenos variáveis não sejam igualmente percebidos por todas as pessoas; essa variação nas avaliações produz efeitos sobre a maneira como as pessoas assumem e reconhecem certos usos linguísticos como marcas de sua identidade, seja grupal, regional ou nacional.
A avaliação é um dos problemas centrais de uma teoria de variação e mudança: “o nível da consciência social é uma propriedade importante da mudança linguística que tem que ser determinada diretamente” (Weinreich; Labov; Herzog, 1968, p. 124).
Nos estudos de produção, as variáveis linguísticas vêm sendo estratificadas em três níveis de apreciação social: os estereótipos, fortemente sensíveis à avaliação social, os marcadores, razoavelmente sensíveis à avaliação, e os indicadores, com pouca força avaliativa (Labov, 1972). Essa estratificação é derivada dos padrões distribucionais de uma dada forma linguística em função das categorias sociais das pessoas que as usam. Por exemplo, se uma forma é usada por pessoas mais velhas e com maior escolarização, em contextos de maior formalidade, temos evidências para o comportamento de um marcador. Já se uma forma é usada por pessoas mais jovens e com menor escolarização, em todos os contextos (seja em situações formais ou informais), podemos ter evidências de um comportamento de estereótipo.
Saber se uma pessoa usa e avalia de maneira positiva uma forma, assim como se usa e avalia de maneira negativa, pode dar um direcional para a mudança, se abaixo ou acima do nível da consciência social. E, para saber a avaliação de uma forma, nos estudos de percepção sociolinguística, uma das estratégias é aplicar testes de atitudes e crenças linguísticas, em que as pessoas são perguntadas explicitamente sobre seus usos linguísticos e o que pensa sobre eles. Outro tipo de teste é o de reação subjetiva, em que as pessoas julgam determinados usos de dada forma variável. Estes testes têm sido aplicados e chegam a resultados muito próximos daquilo que meu pai faz: para certos fenômenos, presentes no seu comportamento linguístico, as pessoas expressam crenças e julgamentos negativos.
Saber se uma pessoa usa e avalia de maneira positiva uma forma, assim como se usa e avalia de maneira negativa, pode dar um direcional para a mudança, se abaixo ou acima do nível da consciência social.
Hoje, um campo de pesquisa bastante instigante é descobrir se a avaliação positiva no nível consciente se reflete na avaliação no nível inconsciente. Para tanto, é preciso considerar, além dos julgamentos que as pessoas fazem de formas linguísticas em função de sua escala de avaliação social inferida pelos resultados de estudos de produção sociolinguística, o esforço cognitivo que as pessoas demandam durante testes, com o controle da dilatação da pupila e do tempo de latência da resposta. O estudo do esforço cognitivo envolvido nos julgamentos de formas linguísticas é o objeto do projeto “Saliência, percepção e atitudes sociolinguísticas”. A partir de recursos tecnológicos não invasivos, como o eye-tracker, estamos tentando entender aquilo que não emerge no nível consciente da avaliação: o que as pessoas estão pensando enquanto estão ouvindo variantes que são socialmente estigmatizadas. As pistas que temos são o tempo da resposta e a dilatação da pupila. Quanto mais tempo demora para responder, maior o monitoramento das consequências da resposta. E a dilatação da pupila está associada à demanda de esforço cognitivo. Com este tipo de teste, poderemos identificar as respostas socialmente aceitas, aquelas que passam por um filtro prévio para não expressar preconceitos linguísticos, por exemplo.
Eu estou morando longe, minhas visitas à minha família não são tão frequentes quanto a minha vontade. Antes eu tentava convencer meu pai de que a língua é dinâmica, que “a gente” é uma forma legítima, etc. Mas eu parei. Eu ouço, e depois de um tempo lanço um fático de concordância. Se meu pai medir a latência da minha resposta e acompanhar a dilatação de minha pupila, vai ver que estou mentindo em meu julgamento.
Sugestões de leitura:
FREITAG, R. M. K.; SEVERO, C. G.; ROST SNICHELOTTO, C. A.; TAVARES, M. A. Como os brasileiros acham que falam? Percepções sociolinguísticas de universitários do Sul e do Nordeste. Revista Todas as Letras, v. 18, p. 64-84, 2016.
FREITAG, R. M. K. Uso, crença e atitudes na variação na primeira pessoa do plural no Português Brasileiro. DELTA. Documentação de Estudos em Linguística Teórica e Aplicada, v. 32, p. 889-917, 2016.
FREITAG, R. M. K.; SEVERO, C. G.; ROST SNICHELOTTO, C. A.; TAVARES, M. A. Como o brasileiro acha que fala? Desafios e propostas para a caracterização do “português brasileiro”. Signo y Seña – Revista del Instituto de Lingüística, v. 28, p. 65-87, 2015.