É possível saber a classe social de uma pessoa só de ouvi-la?
Pistas linguísticas abrem caminho para inferências como local de origem, classe social, orientação sexual e grau de inteligência dos falantes.
A sabedoria popular nos diz para não julgar um livro pela capa. Mas quando ouvimos alguém – ao telefone, no corredor, ou que está sentado atrás no ônibus –, imediatamente temos uma impressão da pessoa: homem ou mulher, gay ou hétero, jovem ou velho, de classe alta ou baixa. Deliberadamente ou não, tais impressões podem se traduzir em inferências, de nossa parte, sobre o falante: Que barulhento! Que inteligente! Que mal educado!
Nosso modo de falar, por exemplo o jeito de pronunciar os Rs ou certas vogais, contribui para essas impressões, além do conteúdo do que está sendo dito? É possível dizer qual é a classe social, a orientação sexual ou o local de origem só de ouvir uma pessoa?
Com essas questões em mente, os linguistas têm se interessado em descobrir em que tipos de pistas linguísticas baseamos nossas inferências e como tais características vêm a se associar a certos significados sociais e estereótipos.
Não conseguir um apartamento
Um estudo em Montreal na década de 1960 mostrou que falantes tanto do francês quanto do inglês, nessa comunidade bilíngue, tinham reações inconscientes semelhantes tanto a anglófonos e francófonos. Alguns falantes bilíngues fluentes foram gravados lendo um texto em ambas as línguas, e as gravações foram depois tocadas a vários “juízes”, que ouviram os áudios e avaliaram os falantes em uma série de características pessoais, mas sem saber que ouviam o mesmo falante duas vezes. Seus julgamentos diferiram de acordo com a língua ouvida: o inglês foi associado com ser confiante, ambicioso, inteligente e ter boa aparência, enquanto o francês foi associado a ser religioso e bondoso.
O inglês foi associado com ser confiante, ambicioso, inteligente e ter boa aparência
Na Califórnia, um grupo de pesquisadores conduziu uma série de pesquisas por telefone para verificar se é possível identificar a etnia do falante com base apenas sem sua voz. Em um dos experimentos, um pesquisador ligava para anúncios imobiliários de jornal e pedia para visitar o imóvel; para cada anúncio eram feitas três ligações, cada qual em um etnoleto diferente, em ordem randomizada: inglês “padrão”, “chicano” ou “afro-americano”. Os diferentes “disfarces” obtiveram taxas diferentes de sucesso em agendar a visita de acordo com o bairro do imóvel, o que mostra que locadores em potencial que são falantes de variedades não-padrão podem ser discriminados com base apenas em sua voz.
Os ouvintes atribuíram diferentes áreas de residência e status social a depender de qual pronúncia de R ouviram numa gravação: bairros mais periféricos e classe mais baixa quando ouviram o “r caipira”
Em um estudo recente em São Paulo, investiguei quais significados se associam a duas pronúncias de R no final de sílaba – o retroflexo, chamado popularmente de “r caipira”, e o tepe, prototipicamente paulistano –, para além de estereótipos relacionados à origem geográfica dos falantes. Os ouvintes, novamente sem saber que estavam avaliando os mesmos falantes, atribuíram diferentes áreas de residência e status social a depender de qual pronúncia de R ouviram numa gravação: bairros mais periféricos e classe mais baixa quando ouviram o “r caipira”. Eles também atribuíram aos falantes características pessoais tanto positivas e negativas, como “sofisticado” e “metido” quando um falante foi ouvido com o “r paulistano”, e “simples” e “trabalhador” quando ouvido com o “r caipira”.
Por outro lado, os resultados também mostraram que os ouvintes avaliam os falantes diferentemente de acordo com suas próprias características sociais. Por exemplo, os moradores de bairros de periferia não diferenciam as pronúncias de R tão drasticamente quanto os moradores de áreas nobres, e os migrantes de outros estados consideram o “r caipira” tão paulistano quanto o tepe. As experiências sociais dos indivíduos sem dúvida estão na base de tais julgamentos.
Como sabemos (ou achamos que sabemos)?
As percepções sociais variam consideravelmente entre indivíduos e grupos sociais, mas também são bastante estruturadas. Características sociais e pessoais tendem a se agrupar em clustersde atributos socialmente relacionados, como “patricinha-irritante-metida-mimada”, “religioso-ligado à família”, “trabalhador-confiável-solidário” e “caipira-com sotaque-classe baixa”.
Certamente ser de classe alta não é sinônimo de ser altamente escolarizado, nem ter tido oportunidade de receber educação formal é sinônimo de ser inteligente. Mas nas experiências sociais das pessoas, a maior parte dos indivíduos de classe alta que conheceram têm um diploma universitário, ou alguém pode achar que uma pessoa não é inteligente porque aquele indivíduo não domina um conhecimento do tipo que “todo mundo aprende na escola”.
Ao que parece, quando uma determinada característica vem a se associar um traço linguístico específico, todo o clusterde atributos se abre para que os falantes-ouvintes façam inferências. Contudo, ainda resta investigar os limites dessas redes de inferências: em São Paulo, ainda que a pronúncia do R se relacione perceptualmente com o nível de escolaridade de um falante, tal percepção não se espalha para inferências sobre sua inteligência, embora outros estudos tenham mostrado uma forte correlação entre percepções de educação e inteligência – como é o caso, por exemplo, da concordância nominal padrão e não padrão em São Paulo.
Quando uma determinada característica vem a se associar um traço linguístico específico, todo o cluster de atributos se abre para que os falantes-ouvintes façam inferências. Contudo, ainda resta investigar os limites dessas redes de inferências.
Não é possível fazer julgamentos 100% corretos sobre características sociais e pessoais de uma pessoa, mas é fato que fazemos inferências sobre indivíduos com que cruzamos em nosso dia a dia, parcialmente com base no modo como falam. Tais inferências são automáticas, mesmo quando se toma o máximo de cuidado para não ser preconceituoso. O mapeamento de associações entre traços linguísticos, significados sociais e características dos ouvintes pode ajudar a entender o funcionamento desses preconceitos sociais, bem como a combatê-los.