Precisa mesmo decorar aquelas longas listas de regras de acentuação gráfica?
A acentuação gráfica em português segue um padrão
Antes de continuar lendo este texto, olhe ao seu redor. O que você pode ver? Agora, faça uma lista de dez coisas que você pode ver.
Eu posso dizer, com um bom grau de certeza, que pelo menos umas seis palavras desta lista terminam em vogal. Acertei? E eu digo mais, talvez uma quantidade semelhante seja de palavras em que a sílaba tônica (a sílaba mais forte) está na penúltima posição, ou seja, são palavras paroxítonas. Acertei de novo?
Você pode estar se perguntando como é possível dar esses palpites sem saber quem você é e onde está. Mas não tem nada de adivinhação nestes meus palpites. Trata-se apenas do tipo de palavras mais frequentes na língua portuguesa: palavras que terminam em vogal e são paroxítonas, como parede, caneta, livro, vaso, e assim por diante. Nestes exemplos e nos próximos, a sílaba tônica está sublinhada.
Além de serem terminadas em vogal e de serem paroxítonas, estas quatro palavras que usei como exemplos têm mais alguma coisa em comum: nenhuma delas tem acento gráfico, ao contrário de palavras como metrô, móvel, árvore.
Caso você tenha se lembrado das intermináveis listas com regras de acentuação gráfica que costumamos ver em livros didáticos, em gramáticas normativas, na internet, esqueça isso! As regras de acentuação gráfica são muito mais lógicas do que estes materiais nos fazem pensar.
Como eu disse, as palavras paroxítonas terminadas em vogal são muito frequentes. Como mostra Leda Bisol, uma das maiores referências que temos quando o assunto é a fonologia do português brasileiro, a preferência pela sílaba tônica estar localizada na penúltima posição é explicada pela atuação do pé métrico troqueu. Calma! É mais fácil de entender isso do que parece. Em teoria fonológica, o ritmo que caracteriza as línguas pode ser explicado, em parte, pela atuação dos pés métricos, termo que foi tomado de empréstimo do estudo dos versos na poesia. Assim, os tipos de pés métricos que governam cada língua vão determinar, por exemplo, a preferência por paroxítonas ou por oxítonas (palavras em que a sílaba tônica é a última sílaba) em uma língua. O pé métrico troqueu é responsável pelo ritmo organizado em torno de uma sílaba forte e uma sílaba fraca, nesta ordem. Desta forma, em português, o pé métrico troqueu manda que as duas últimas sílabas de uma palavra formem uma unidade, na qual a sílaba tônica será aquela sílaba mais à esquerda.
No que diz respeito à acentuação gráfica, temos uma regra geral: as palavras que tiverem uma forma frequente não serão acentuadas graficamente; as palavras que tiverem uma forma pouco frequente serão acentuadas graficamente.
Vamos entender melhor isso.
Volte para sua lista de dez palavras. Talvez haja nela palavras terminadas em consoante e nas quais a sílaba tônica esteja na última posição, como computador, celular, papel e cartaz. Este é outro tipo muito comum de palavra na língua portuguesa. E o pé métrico troqueu? Não funciona aqui? Funciona, sim. Mais uma vez como explica Leda Bisol, o pé métrico troqueu que atua em português é de um tipo específico: o troqueu mórico (“mórico” deriva de “mora”, uma unidade de medida do peso da sílaba). Este tipo de pé faz uma diferença entre sílabas leves e sílabas pesadas: as leves são aquelas terminadas em vogal; as pesadas, aquelas terminadas em consoante. O troqueu mórico manda que, se a última sílaba de uma palavra for pesada, a sílaba tônica estará nela. Caso a última sílaba seja leve, voltamos ao caso anterior: as duas últimas sílabas de uma palavra formam um pé, no qual a sílaba tônica será aquela sílaba mais à esquerda.
Observe que este tipo de palavra, oxítonas terminadas em consoante, também não recebem acento gráfico, por ser bastante frequente. A esta altura, isso não deve ter gerado surpresa. Temos, assim, duas regras que dão conta da acentuação gráfica da maior parte das palavras da nossa língua:
1) palavras paroxítonas terminadas em vogal não receberão acento gráfico (parede, caneta, livro, vaso);
2) palavras oxítonas terminadas em consoante não receberão acento gráfico (computador, celular, papel, cartaz).
Existem muito mais palavras sem acento gráfico do que palavras com acento gráfico na língua portuguesa. Então, faz muito mais sentido termos começado por elas.
Agora podemos pensar nas palavras que recebem acento gráfico. Como eu espero que tenha ficado claro até aqui, o que é frequente não recebe acento gráfico e o que não é frequente recebe acento gráfico. Viu, é um sistema cheio de lógica.
E quais são as palavras de tipos pouco frequentes? Aquelas que têm sílaba tônica na antepenúltima posição – as proparoxítonas (árvore), as oxítonas terminadas em vogal (metrô) e as paroxítonas terminadas em consoante (móvel). E assim se completa a nossa mini lista de regras de acentuação gráfica:
3) as proparoxítonas receberão acento gráfico (árvore, fôlego);
4) as oxítonas terminadas em vogal receberão acento gráfico (metrô, café);
5) as paroxítonas terminadas em consoante receberão acento gráfico (móvel, dólar).
Estas cinco regrinhas dão conta da acentuação gráfica de uma porcentagem muito grande das palavras da língua portuguesa, o que é bem prático e nos ajuda bastante. Mas, além disso, a gente descobre como as pessoas que inventaram as regras de acentuação gráfica foram espertas e como perceberam os padrões da língua.
Identificar padrões é sempre uma tarefa instigante. E, se você se interessa por descobrir padrões nas línguas, fica uma dica: considere saber mais sobre a linguística e suas diversas áreas de pesquisa.
Para saber mais:
BISOL, Leda. O acento, mais uma vez. Letras & Letras, n. 18, v. 2, p. 103-110, 2002. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/letraseletras/article/view/25136/13954. Acesso em: 28 out. 2024.
SIMIONI, Taíse. O acento gráfico em português e sua relação com o acento fonológico. In: GIOVANI, Fabiana; ALVAREZ, Isaphi Marlene Jardim. (Orgs.). Embates dialógicos nas formações inicial e continuada: significando práticas e constituindo olhares. São Carlos: Pedro e João Editores, 2013. p. 105-115.